Artigo de Miguel Pires, publicado no Mesa Marcada em 13.12.10
Decorria o ano de mil novecentos e oitenta e o hino soviético era o hit desse Verão. Regressava da monumental piscina da Figueira da Foz e, ao ligar a televisão, lá estavam, mais uma vez, três atletas no pódio ao som do hino, enquanto a bandeira cinzenta com uma foice e um martelo ia sendo hasteada pela enésima vez. Nesse dia não era o facto dos paÃses de leste dominarem os Jogos OlÃmpicos de Moscovo que perturbava o meu pró-americanismo bacoco, em plena época de guerra fria, mas sim um peixe hirto com o rabo na boca que me observava do alto da mesa da sala de jantar. “Nem morto como aquiloâ€, devo ter dito, com a sobranceria própria de um valente de 12 anos que acabara de fazer 100m bruços. Ainda vi, no televisor a preto e branco, outro soviético vencer a prova de saltos para a água. Mas logo a fome a apertou e reconsiderei. Aquele peixe estranho talvez merecesse o benefÃcio da dúvida. Ao lado, um tacho com arroz. De cenoura, creio. Menos mal, não iria passar fome. Na verdade ambas as coisas me souberam muito bem. O suficiente para hoje ainda me lembrar do episódio.
Ao longo de todos estes anos não voltei a comer o que vim a saber depois chamar-se “Pescadinha de rabo na bocaâ€. Até à semana passada em que me cruzei com uma, no PolÃcia, onde entrei para almoçar.
À data desta história já este restaurante contava com uma idade respeitável. Clássico lisboeta, O Policia deve o nome a um agente da autoridade que o abriu no inicio do século passado. Ainda hoje se encontra na famÃlia e é um daqueles lugares com um espÃrito de época (anos 70/80) que nos faz sentir bem. Predomina uma clientela habitual: mais executivos, de 2F a 6F; famÃlias, ao fim de semana (“Oh João, faz lá sair uns filetesâ€, ouvia alguém da mesa do lado pedir ao empregado, como se estivesse em casa).
A ementa é composta essencialmente por pratos intemporais. Boa parte de frigideira, mas também cozidos e grelhados, sobretudo, na parte dos peixes. No primeiro almoço, de entrada, escolhi umas gambas al ajillo de tamanho médio, qualidade razoável, mas bem cozinhadas. Depois um belÃssimo coelho na sertã. A dose era suficiente para dois mas, embora sozinho, pouco ficou no prato daquela carne tenra envolta num molho saboroso (tão bem feito que quase não se dava pelo tomate de conserva que me pareceu existir), já para não falar das batatas fritas gulosas. Já a sobremesa foi chumbada. O leite creme estava ligeiramente talhado e a capa de açúcar queimado no momento era demasiado espessa, tornando o conjunto enjoativo.
O segundo almoço foi o da pescadinha da memória: peixe de óptima qualidade (textura firme) tratado em boa fritura e acompanhado de arroz de tomate muito bem apaladado (só não compreendo o porquê de ser feito com arroz agulha, em vez de carolino). A galinha de cabidela reconfirmou a boa mão de quem cozinha e o arroz doce, de sobremesa, estava divinal, ainda que desequilibrado: parte cremosa a mais e arroz a menos. Deve essa particularidade que lhe dá a fama além de que de arroz, nesse dia, já bastava.
Em termos de vinhos, não sendo fantástica, a oferta é variada e os preços sensatos. O branco Marquês de Borba 09cumpriu o desÃgnio de forma competente.
O serviço em geral é despachado e profissional mas percebe-se que o grau de simpatia depende do empregado que nos atende.
É bom saber que há clássicos que conseguem manter um bom nÃvel qualitativo ao longo das épocas ao ponto de nos fazerem viajar no tempo.